quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Fala Quase Póstuma

"Essa dor é toda nossa, é você quem não a vê..."


"Nuns oitenta e quatro ano que eu tenho eu escuto grito. Tudo é gritos! Ô, Padim Ciço, quandé que eu vô pará d'escutáos grito dos outro? Já nasci co'a partera gritano pra buscá pinga no balaio senão minha mãe num froxava pr'eu nascê. Causo disso qu'eu tenho esses braço magrelo que nem perna de grilo.
Mãe num dava o de comê direito: no começo era leite miséria, desses de sertão meso. Dispois era uns bocado de farinha n'água suja que eles cuzia pra nois. Ave Maria! Cumé que era bão o troço! Pena que era poco, e dava só pera duas mãozada na boca, só. Despois aprendi a cumê parma. Num era bão que nem tropeço, mas dava arrimo pra andá pra baixo no mapa. Mas as poca comida não era os pobremas meso não. Os pobremas era sempre os grito: o homi que matô meu pái pra casá co'a mãe vivia gritano. Era grito pru qualqué razão. Inté no dia que ele deu na cara de minha mãe: batê na cara da mãe dos otro é joga preda na Padruera; é ferreá os pé de Padim Ciço. Meu irmão passô a mão na foice e nois tivemo o que comê por duas semana.
Nois seguia pra baxo no mapa, e ouvia os grito de fuzarca, caladim. Num conseguia intendê por causa de quê que ês mexia co nóis. Nois tamém podia ter carro, era nóis que num queria. E ês tamém, tava tudo impulerado no caminhão, que nem frango de ovo.
Morreu a mãe de veia, os irmão de doença, até o cachorro magricela morreu. Ficô só eu, sozim. mas ainda descia o mapa. tava já num Jenquintinhonha, que peguei uns balaio pra vendê no sutento. Daí mprá chegá na Sã Polo foi mais fácil: ao menos água já tinha.
Rumei trabáio. É era até bunito. Era eu que dexava a praça verdinha e catava os lixo todo, aí passava os home galantoso, todo pomnposo da vida e falava assim: "tome esses trocados, que quem batalha chega onde quer" bonito de dá dó. Ô, quem dera fosse verdade. Com dois mês veio os home de farda gritá comigo; causo de quê a mpraça num é lugá de mindingo fedorento. Och, gente, nunca apenhei tanto. Mi bicudaru até na cara, me cortaro de navaia quante, me cacetaro até, no lombo, até jogaro água quente. Me chamaro de cachorro, cabeçudo, magricela, tripa seca. Dero tiro na perna, quand'intendi cuso de quê que os menino gritava co eles: eles não era home de Deus; eles queria só feijão co'arroz. Dexa eles vê! Padim Ciço há de vingá essas bofetada. Cê vão tudo pro inferno, seu excumungado! Quas'qu'eu morri. Foi três semana na porta da paróquia, cos padre cuidano d'eu, escondido. Eles falava pr'a eu perdoá, que Deus deixava eu vivê, de novo.
Cabô os puliça que bate ne nois. Mas cuntinuei apanhano. Apareceu un menino-moleque-da-vida, filho dos home importante e mi bicudaro todo de novo, que nem os gritadô co'as farda. Mas eu perduei de novo, pra tentá vivê.
Os desaforo da vida continua,meus fi. Só num quer4o aceitá um: esses vagabundo vir gritá na minha oreia bem na hora que eu tô morreno? Padim Ciço que me perdoa, mais ocês vão tudo pro inferno, seus fio-da-puta! Tem mais de cinco ano que eu tô aqui, nesse papelão no canto da rua, passa home pomposo, muié formosa, carro, caminhão... passa atré uns avião que nem aurubu, lá no arto... Ninguém... quase conversa co'eu. Quand'eu peço hora, ês m,e joga umas moeda e faz sinal da cruz. Mas num fala um "bão dia"... Justo na hora que eu tô morreno ocês veêm gritá do meu lado... num... perdôo... quero morrê em paz... Sem ouvi gritaria. Shhhhh! Faiz silêncio! Daqui a poco, quand'eu morrê, cêis mo joga na praia? Bota 'neu aquelas frô branca, ingual de rico? Si fizé funeral, cês me lava?
Ói só: o ar tá fartano, que nem água ne poço de sertão. Só quero um terço, pra subi com Padim Ciço. Fala pro hojme da farda pra cuidá mais dos fio deles. Fala pros menino-moleque-da-vida pra dá um poco de dinheiro pros mindingos. Pede pra benzê meu corpo na hora de eu subi. E me faz só mais um favô: pede pro político do sorrisão um minutim sem gritá, só pra eu terminá de morrê. Qiuero silêncio, só de um minutim. Jesus abençôa ocês que fica..."

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