domingo, 14 de setembro de 2008

Dédalos Encefálicos

Era um tempo difícil. Os meninos de Hitler já tinham armas nas mãos aos quatorze anos. Eram cruéis, e gostavam disso. Sabiam que o sangue judeu era de bom gosto, mas não lho podiam engolir, que ele era sujo como coca-cola, então bebiam o sangue tinto de vinho, comungavam a vitória, comiam o pão da carne judia e depois o cospiam, num ato puto e santo.
Era um tempo difícil. O exército francês precisava de soldados e o contratou, mesmo sabendo que havia perdido seus dois filhos e estava quase louco. Sabia que morreria em um mês, então resolveu ir pra guerra, que assim ao menos se vingaria da morte de seus filhinhos. Cortara-se com ferro quente. Fizera uma cruz no peito, pra fazer justiça aos que mataram por nada.
O menino foi jogado num navio e recebeu uma arma. O homem foi jogado num navio e recebeu uma arma.
O homem era extremamente violento. Certa vez encontrou dois alemães. Torturou-os por cinco dias, e só parou porque os “Bigodinhos” não agüentavam mais. Lembrara-se de seus filhos. Arrancava-lhes os nervos das pernas. Com as mãos.
O menino era extremamente violento. Apesar de só ter tido a oportunidade de matar vinte e cinco “fedorentos” num fuzilamento. Seus braços eram não muito mais grossos que o cano da arma. O furor lhe escapava dos olhos. Em seu tórax, havia cortes em ferro quente: “TOD”, estava escrito em letras garrafais e fundas.
Houve um combate.
Um navio naufragou.
Outro navio naufragou.
Um soldado francês estava num bote.
Um menino estava se afogando. A arma era pesada e puxava Frederich para baixo d’água. Seu corpo débil não resistia à falta de ar. Logo a arma, sua única amiga e fiel escudeira o estava traindo. Nunca havia sentido tão fortemente o gosto do sal, era a glória salgada da morte na guerra lhe penetrando as artérias. Jacques olhava o menino se afogar, rindo. Pensava até em puxá-lo para fora d’água, mas o jogaria de novo, afinal, a diversão era grande. O menino finalmente conseguiu se aproximar do bote e nele se apoiar para tomar fôlego. Bastou o vigoroso francês tocá-lo com o remo para que ele tornasse a sua posição original salgando novamente sua boca, dando mais e mais diversão ao gozo de Jacques.
O moleque se contorcia na água, fazendo o possível para trazer algo que não fosse água e sal aos pulmões. O francês, olhando-o, notou que por mais frágil e fraco que fosse ainda lhe sobravam algumas carnes pelo corpo. Nisso, lembrou-se que precisava comer algo e que a praia estava distante; não agüentaria remar sozinho até seu destino. Estava decidido: teria de tirar o menino d’água por questões de sobrevivência, não por pena ou qualquer outra bobeira dessas que se ensinam na igreja, afinal, era um alemão.
Frederich não acreditava que havia sido salvo por um francês fedorento. Logo ele, que em hipótese alguma salvaria um idiota do exército inimigo. Não entendia o porquê de ter sido salvo. Mas estava grato, e remava enquanto Jacques descansava um pouco. Sentia o cheiro do francês, sentia ódio e alegria, ânsia de vômito e bem-estar.
Jacques, em seu descanso, lembrava-se de seus filhos. Lembrava-se deles, mas não conseguia ver seus rostos. Via vultos e borrões, via o rosto de Frederich no lugar do de seus filhos. O ódio lhe ferveu as artérias. Esquentava-lhe a cabeça o fato de uma alemão sujo estar no lugar de seus filhos. Avançou sobre o nojento e começou a esganá-lo, com o prazer da vingança, rindo enquanto via sangue escorrer das narinas do moleque, cujo pescoço fino era de fácil de quebrar, era quase tão prazeroso como matar um frango para saboreá-lo na janta farta.
O menino olhava assustado para a face francesa que o matava, devagar. Pensava no motivo para tal execução e não o encontrava. Mas continuava olhando fixamente para a cara do homem que havia salvado sua vida e agora estava o matava. Num repente, notou que o rosto do francês nojento estava mudando. Havia um traço aqui outro acolá do rosto de seu pai. Lembrou-se, então, do momento em que assistia a morte de sua mãe, pelas mãos do próprio pai. Então juntou sua pouca força com seu muito ódio e fez um corte no braço de seu pai, que logo se desfigurou e voltou a ser o francês, gritando a dor de ter sido perfurado no músculo do braço.
Jacques gritava. Xingava Frederich, que não entendia o que ouvia, mas sabia que estava sendo xingado. Arrependeu-se de ter cortado o braço do francês, e improvisou um curativo com um retalho de sua farda. Jacques sentiu que, pela primeira vez, após a morte de seus filhos, alguém se preocupava com ele. Sentiu nas mãos feridas do alemão outrora nojento, uma carícia que há muito não sentia, sentiu as mãos de seu filho o tocando. Frederich acabou o curativo, e pôs-se a remar, até a exaustão. Após horas de remo, não agüentava levantar os braços. Estava frio, estava fraco, sentia fome. Jacques tremia de frio, dormindo. Frederich tremia de frio e então se deitou ao lado de Jacques e abraçou-o para acabar o frio. Dormiram ali, como pai e filho pela primeira vez, na paz da guerra.
O sol caía em placa sobre os corpos dos soldados. Acordaram simultaneamente e perceberam que estavam próximos do litoral. Havia gaivotas no ar. Puseram-se a remar, mesmo com toda a fome e exaustão. Viram o litoral em pouco tempo, era uma praia; deserta e calma, não havia guerra, luta, nada. Também não havia paz, alegria. Não havia nada. Mas remavam rumo ao litoral, esperançosos. Finalmente estariam em terra firme. Não acreditavam poder botar os pés no chão, sem guerra, sem morte, sem ódio. Estavam finalmente a salvo de armas e guerras. Abraçaram-se, fortemente. Jacques sentia no calor do corpo de seu filho toda a paz que poderia sentir e o apertava cada vez mais e mais. Frederich sentia-se sufocado. Jacques apertava mais, abraçava firme o pescoço do garoto. Frederich via seu pai tentando o matar, assim como fizera com sua mãe, sentia ódio, mas não podia se mexer. Podia somente olhar o rosto de seu pai. Era tão dócil, tão calmo, tão bruto. Sentia todo o ódio que guardara para a guerra. Roubava-lhe o oxigênio com um abraço, apenas. Jacques via o corpo frágil de seu filho se contorcendo em seu seio, mas permanecia apertando. Frederich sentia ódio, tentava se livrar do abraço mortal do amor.
Pungiu-lhe a costela.
O amor matava duas pessoas, deveria ser este o motivo da guerra.
Alemães e franceses se amavam.
Encontravam-se dois corpos à beira-mar: pai e filho, mortos, por amor.

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